Aos doze anos, Mendelssohn foi levado a Weimar por seu professor de composição, Carl Friedrich Zelter (1758-1832), para conhecer ninguém menos que Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), então um senhor de mais de setenta anos. Assim nasceu uma genuína relação de amizade, que duraria até a morte do poeta, cerca de dez anos depois.
Em 1828, Mendelssohn compôs uma abertura baseada em dois poemas de Goethe: “Meeresstille” [Mar Calmo] e “Glückliche Fahrt” [Viagem Próspera], ambos escritos em 1796. Os mesmos versos, cheios de contrastes, já haviam inspirado Beethoven e Schubert, mas a versão de Mendelssohn — a única que contou com a bênção do poeta — foi a que se tornou mais conhecida. O termo “abertura” pode ser enganador: não se trata de música introdutória a um espetáculo, mas sim de um pequeno poema sinfônico, aqui estruturado em duas partes — uma lenta, outra rápida.
A calmaria do mar no poema de Goethe não é razão para paz de espírito, mas de preocupação: para a navegação do século xviii, a falta de vento era um verdadeiro problema. Daí o caráter sombrio e algo melancólico criado por Mendelssohn na primeira parte de Mar Calmo, Viagem Próspera. Um solo de flauta traz as correntes de ar necessárias para a viagem, propondo a transição para a segunda parte, quando a música navega por mares beethovenianos, com céu claro e marinheiros cheios de ímpeto, até um desfecho triunfal.
Em 1721, Jean-Féry Rebel dirigiu em Paris a ópera-balé Les Éléments [Os Elementos], de Destouches e De Lalande. Foi nessa ocasião que o rei Luís xv dançou num palco pela primeira vez. Dezesseis anos mais tarde, Rebel compôs sua própria versão para Os Elementos — uma “sinfonia- balé”, gênero que ele mesmo criara, em que a relação entre música e dança dos espetáculos não tinha a intermediação de um libreto. Escrito alguns meses depois, “O Caos” foi incorporado como prólogo — não dançado — à obra.
Os clusters que abrem “O Caos” poderiam ser vistos como uma notável prefiguração de procedimentos vanguardistas que marcariam a música do início do século xx. No entanto, a peça não apresenta um esforço de desenvolvimento da linguagem tonal, mas uma tentativa de fazer música descritiva. O próprio Rebel anotou que essa introdução, com todas as notas de uma oitava tocadas simultaneamente, era “o próprio caos”: a confusão que reinava entre os elementos — terra, ar, água e fogo — antes da criação.
Sem o apoio de cenários, figurinos e uma narrativa propriamente literária, Rebel construiu uma música bastante original, tanto pela ênfase no discurso harmônico quanto pelo cuidado com a escolha dos timbres, aspectos que seriam retomados e desenvolvidos pelo também francês Rameau. Mas, de novo, a motivação do compositor era imitar a natureza, mais do que inovar a linguagem. Em nota sobre a peça, Rebel escreveu que os contrabaixos representam a terra; as flautas imitam o murmúrio da água corrente; as longas notas seguidas por trêmulos nos piccolos descrevem o ar; e os violinos, com frases vivas e brilhantes, simbolizam a atividade do fogo.
RICARDO TEPERMAN é doutorando em antropologia social na Universidade de São Paulo e editor da Revista Osesp.
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Em 1968, Camargo Guarnieri era um artista premiado nacional e internacionalmente, maestro e professor de composição e regência na Universidade Federal de Goiás e tinha sua obra reconhecida além de nossas fronteiras. No ano anterior, sua Sinfonia nº 4 fora estreada pela Sinfônica de Portland — sob regência de Paul Vermel — e transmitida pela Voz da América.
Quando recebeu a encomenda para o Concerto nº 4 Para Piano, estava imerso em canções: escrevera catorze no espaço de um ano, sem contar O Caso do Vestido, cantata para narrador, soprano, coro e orquestra, sobre poema de Carlos Drummond de Andrade.
À semelhança do Concerto nº 3 Para Piano (1963), encomenda da Rádio MEC, o Quarto também foi encomendado, dessa vez pelo Governo do Rio Grande do Sul, por meio da Pró Arte Brasil Sociedade de Artes, de Porto Alegre. Dedicado ao pianista Roberto Szidon, o Concerto foi por ele estreado em 6 de setembro de 1972, tendo o próprio Guarnieri como regente.
A análise dos manuscritos da obra e a documentação pessoal do compositor apontam para dois fatos que se traduzem musicalmente na partitura. O primeiro é que a maturidade lapidou o processo de criação e marcou sua expressão mais íntima. Em vez de trabalhar no papel desde as primeiras ideias, Guarnieri passou a refletir e planejar para depois escrever a parte do solista, e as primeiras marcações para o conjunto que acompanha. No início do ano de 1968, deu notícia do projeto de um novo concerto a seu amigo e primeiro professor de composição, Lamberto Baldi, que, em maio, pediu novidades. Guarnieri escreveu: “Antigamente, não deixava que as ideias caminhassem dentro de mim. [...] Agora, com os cabelos brancos, prefiro ruminá-las e, quando surgem para a minha vida interior, sei usá-las melhor.”¹
Até o final daquele ano, ficaria pronta a parte do piano com a redução da orquestra — ou seja, o contorno principal das vozes dos instrumentos —, embora o compositor ainda não tivesse definido os principais timbres a explorar. Sempre disposto a criar ambiente novo para o piano — ele escreveu ao todo seis concertos para este instrumento, além de quatro outras obras em que o teclado é protagonista —, Guarnieri pediu desta vez uma orquestra sem os violinos. Na obra, a percussão é rica e variada e, para contrabalançar a ausência das notas agudas do naipe das cordas, o compositor faz uso de muitos diálogos com as madeiras, como flauta, flautim, oboé e clarinetes.
Ainda em conversa com o antigo mestre, Guarnieri confessou a vontade de inovar — e de forma radical. O compositor considerava a inclusão de uma guitarra elétrica ou de um instrumento musical da cultura gaúcha: gaita de boca, sanfona (ou bandoneon) e até mesmo a zampogna (tipo de gaita de fole de origem italiana). Embora tenha abandonado ambas as ideias, a menção não é de se estranhar quando observamos a história da música popular brasileira daquele momento.
A vontade de usar a guitarra foi deixada para trás em meio às discussões sobre o emprego do instrumento em nossa música popular. Estas eram alimentadas, de um lado, pelos compositores que escreviam canções de protesto e temáticas voltadas para a vida do país (grupo que veio a ser conhecido como MPB); e, de outro, pelos artistas da chamada Jovem Guarda (com a Tropicália começando a embaralhar as coisas). A disputa ganhara as ruas, com direito a passeatas contra o emprego da guitarra na música popular, situação sui generis na música de qualquer nação. Guarnieri também abandonaria a ideia de colocar um instrumento representativo da cultura gaúcha.
O compositor queria provocar uma impressão forte, e uma possível tradução de sua vontade de inovar talvez seja o uso constante de melodias que seus intérpretes e estudiosos costumam chamar de melodias seriais, pouco praticadas na temática do compositor até meados da década de 1950. De fato, o Concerto nº 4 começa em ritmo agitado. O primeiro movimento, “Resoluto”, é breve. O desenvolvimento, central, inclui uma longa cadência do solista. Em sua porção final, o vibrafone, as flautas e os clarinetes são muito atuantes.
O segundo movimento, “Profundamente Triste”, confirma o outro ponto que os manuscritos e as notas do compositor não escondem: em 1968, Guarnieri estava muito apreensivo com os tempos sombrios da política nacional e, sempre que tinha a oportunidade de falar a respeito para os amigos, lamentava a situação política e econômica. Emoldurado pela orquestra, que traz contrastes fortes entre as madeiras, os sopros e a percussão, é o mais longo dos três movimentos do Concerto. Nele, Guarnieri acolhe a melodia “Meu Boi Barroso”, declaração do grande afeto do compositor pelos muitos amigos do Rio Grande do Sul.
Apesar da indicação “Rápido” para o andamento do último movimento, ele é rico em nuances. O conjunto ora ralenta, ora retoma o clima mais veloz do início, com destaque para a participação do agogô e do triângulo, principalmente. Construído em cima de três melodias principais, apresentadas na sequência ABCBA, o movimento conclui a peça de forma extremamente viva e brilhante.
FLÁVIA CAMARGO TONI é professora titular do IEB/USP e organizadora do livro A Música Popular Brasileira na Vitrola de Mário de Andrade (Editora Senac, 2004).
1 BALDI, Lamberto. Carta para Camargo Guarnieri. Montevidéu, maio de 1968. Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo.