TCHAIKOVSKY
Sinfonia nº 5 em Mi Menor, Op.64 /TCHAIKOVSKY EM FOCO
Na primeira metade do século XIX, o crítico russo Vissarion Bielínski escreveu que “nossa literatura, semelhante a nossa sociedade, foi transplantada de um solo alheio para o nosso” (3). Assim os russos, em geral, percebiam as transformações históricas de que eram,
ao mesmo tempo, o agente e o objeto. Em vez de se desenvolverem gradualmente no país, formas sociais foram introduzidas prontas e em bloco, no esforço de instituir na Rússia um Estado moderno, à luz dos modelos europeus, tidos como superiores.
Só que a Rússia abrigava uma sociedade complexa, consolidada por muitos séculos de história. A população, em suas diversas classes, era portadora de tradições, saberes e perspectivas que não se assimilavam aos critérios inerentes àquelas formas sociais. O conflito resultante foi duradouro e imprimiu um dinamismo incomum às aspirações e aos questionamentos expressos na arte e no pensamento russos.
Os padrões métricos da poesia, o romance, assim como a ópera, a sinfonia, o balé e os próprios instrumentos
da música de concerto desembarcaram na Rússia prontos, acabados. Artefatos para serem usados e não propriamente produzidos. A passividade implícita nesse processo enfrentou uma resistência inesperada. Por trás e por dentro das estruturas trazidas de fora, as raízes históricas russas abriram caminhos surpreendentes para se desenvolver.
A rigor, nenhuma dessas formas artísticas passou incólume pela Rússia. As pretensões de superioridade
e de primor cultural, de que eram mensageiras, foram questionadas por dentro, o que afetou seus pressupostos e seus traços constitutivos. Nem era necessário que os artistas tivessem consciência do conflito, pois este era o próprio conteúdo de suas vidas. Suas obras, em direções e graus variados, davam voz a ele.
É o que a obra de Tchaikovsky ilustra à perfeição. Ela surgiu num ambiente musical integrado ao amplo debate em curso sobre o destino do país. Desde Mikhail Glinka, alguns anos antes, passando por Balakirev, Mussorgsky, Borodin e Rimsky-Korsakov, o horizonte de uma música especificamente russa vinha alimentando os experimentos dos compositores e as expectativas do público.
À diferença desses compositores, que, em geral, não
se acanhavam em se declarar autodidatas e até de se definir como músicos de fim de semana, em desafio às convenções da alta sociedade, Tchaikovsky teve uma formação profissional estrita e viveu só de música. Sua Sinfonia nº 5 foi composta em 1888, quando estava
com 48 anos de idade, no auge da carreira (ele morreria cinco anos depois). No arcabouço sinfônico consolidado pela tradição alemã, Tchaikovsky enfatiza o material melodioso, exacerba a dramaticidade, dá alguma voz solista a quase todos os instrumentos, reitera os temas copiosamente e se aventura em digressões emotivas arriscadas, mesmo aos ouvidos de um romântico europeu. Não admira que Brahms tenha aprovado a obra, a não ser pelo último movimento.
A profusão de melodias populares russas e eslavas
que Tchaikovsky disseminou pelos quatro movimentos está mais concentrada justamente no “Finale”. E, se nos detivermos nas demoradas notas no registro mais grave dos contrabaixos e fagotes ao fim do primeiro movimento, não será difícil ouvir ali a voz dos baixos profundos dos coros sacros da Igreja Ortodoxa russa.
São exemplos de como mesmo um compositor às vezes tido como ocidentalista por alguns de seus pares russos conseguiu, mediante uma construção musical à primeira vista anômala, abrir uma perspectiva que permite encarar a história de outro ângulo. E o importante é que, vistos ou ouvidos daquele lado, conceitos supostamente universais e superiores se mostram bem menos seguros de si.
[2014]
RUBENS FIGUEIREDO é tradutor e autor de As Palavras Secretas (São Paulo: Companhia das Letras, 1998),
Barco a Seco (São Paulo: Companhia das Letras, 2001) e Passageiro do Fim do Dia
(São Paulo: Companhia das Letras, 2010), entre outros livros.
1. Ver ensaio de Richard Taruskin, sobre Tchaikovsky aqui.
2. Composta como uma “canção sem palavras”, essa melodia foi inúmeras vezes retomada e adaptada para o contexto do cinema e da música popular no século XX. Ver, como exemplos, Tonight We Love na interpretação de Tony Martin (disponível em youtube.com/watch?v=gK_nhZV4xNg) e Alone at Last, com Jackie Wilson (youtube.com/watch?v=P_M9QOor7Uw).
3. GOMIDE, Bruno (org.). Antologia do Pensamento Crítico Russo. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 122.
Leia sobre Pyotr I. Tchaikovsky no ensaio "Tchaikovsky, Sinfonista Patético", de Richard Taruskin, aqui.