HEINZ HOLLIGER [1939]
Duas Transcrições de Liszt [1986]
NUVENS CINZENTAS [ATTACCA]
SINISTRO
12 MIN
DMITRI SHOSTAKOVICH [1906-1975]
Concerto nº 1 para Violoncelo em Mi Bemol Maior, Op.107 [1959]
ALLEGRETTO
MODERATO [ATTACCA]
CADENZA [ATTACCA]
ALLEGRO CON MOTO
30 MIN
/INTERVALO
JEAN SIBELIUS [1865-1957]
Sinfonia nº 1 em Mi Menor, Op.39 [1899-rev.1900]
ANDANTE MA NON TROPPO. ALLEGRO ENERGICO
ANDANTE MA NON TROPPO LENTO
SCHERZO: ALLEGRO
FINALE (QUASI UNA FANTASIA): ANDANTE. ALLEGRO MOLTO
38 MIN
HOLLIGER
Duas Transcrições de Liszt
“Na transcrição não há necessidade de muita invenção: uma certa fidelidade conjugal ao original é geralmente melhor [...]. Talvez praticar a arte da transcrição (que eu basicamente inventei) por cinquenta anos tenha me ensinado a manter o equilíbrio correto entre o muito e muito pouco nesse campo” — escreveu Franz Liszt (1811-86) em uma carta em 1880.1 Liszt tinha consciência de ter elevado a atividade da transcrição de algo puramente técnico, como era entendida até então, a um fazer artístico: ao transpor uma obra para outro meio, o transcritor impinge sua concepção estética sobre o original. Liszt consagrou-se na atividade transpondo para o piano peças orquestrais e operísticas em voga à sua época. Muitas de suas obras pianísticas, reversamente, têm passagens com indicações de instrumentos orquestrais, cujo objetivo é inspirar o intérprete em relação à intenção sonora.
Nuages Gris e Unstern! são peças para piano escritas no fim da vida do compositor, em 1881, quando Liszt abandonara o virtuosismo e a grandiosidade romântica que lhe renderam fama e sucesso na juventude, e recolhera-se em uma vida monástica nos arredores de Roma. As obras desse período são austeras, concisas e harmonicamente muito arrojadas – como se o compositor estivesse procurando reduzir sua expressão apenas ao essencial. Os títulos originais dessas duas peças evocam mistérios: Nuages Gris pode ser traduzida como Nuvens Cinzentas, e Unstern!, sem correspondência em português, alude a uma estrela que traz má sorte, tendo sido traduzida para o francês como Sinistre [Sinistro].
As transcrições de Heinz Holliger [1939] — oboísta, maestro e compositor suíço que colaborou com alguns dos mais célebres compositores da segunda metade do século XX [e um grande parceiro da Osesp, que estará conosco novamente este ano] — são, no mais puro sentido lisztiano, novas obras de arte feitas a partir de suas referências. Escritas em 1987, mais de cem anos depois das originais, elas transformam as obras de Liszt em nuvens e constelações de cores e luzes ainda inimagináveis nos céus vistos pelo compositor.
1 KREGOR, Jonathan. Liszt as Transcriber. Cambridge University Press, 2010, p. 1.
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SHOSTAKOVICH
Concerto no 1 Para Violoncelo em Mi Bemol Maior, Op. 107
O progressivo afrouxamento das políticas de censura soviéticas que sucedeu a morte de Stalin, em março de 1953, permitiu a Dmitri Shostakovich (1906-75) dedicar-se mais à composição de obras de seu próprio interesse. Sua relação com o governo havia sido sempre ambígua: ora aclamado como grande compositor soviético, ora severamente reprimido, Shostakovich incorporou à sua música uma ironia tão fina que, com frequência, é difícil afirmar se uma obra enaltece ou deprecia o tema de seu programa.
Em junho de 1953, ele repentinamente anunciou que estava escrevendo um concerto para violoncelo, dedicado ao amigo Mstislav Rostropovich (1927-2007), lendário instrumentista que havia sido seu aluno no Conservatório de Moscou. O colega já ansiava pelo feito, em silêncio – por recomendação da esposa de Shostakovich — e seu entusiasmo foi tamanho que, ao receber a partitura em agosto, ele aprendeu o concerto em quatro dias e o tocou de cor ao compositor. Essa proeza maravilhou Shostakovich: tendo estudado violoncelo na juventude, sabia ter composto uma das obras mais difíceis já escritas para o instrumento. Em suas memórias, Rostropovich conta que os dois ficaram tão animados que ele tocou o concerto três vezes, intercaladas a doses de vodka.
Rostropovich estreou com sucesso a obra em outubro, em São Petersburgo, com a Orquestra Filarmônica de Leningrado (hoje Orquestra Filarmônica de São Petersburgo), sob regência de Evgeny Mravinsky (1903-88).
O concerto baseia-se em um tema derivado do motivo DSCH, formado pelas notas correspondentes às iniciais do nome do compositor, em alemão (Ré, Mi bemol, Dó, Si). Apresentado logo no início pelo violoncelo solo, o tema é variado e distorcido ao longo de todos os quatro movimentos, calcando-se, contudo, em uma sólida estrutura formal. O primeiro e último movimentos, de caráter neurotizante, emolduram o lirismo do segundo movimento e a pungência do terceiro – que, na verdade, é uma longa cadência para violoncelo solo. Do segundo ao quarto movimentos, a obra deve ser tocada de forma contínua, sem interrupções.
Sete anos depois, Shostakovich dedicaria novamente a Rostropovich seu Segundo Concerto para Violoncelo.
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SIBELIUS
Sinfonia no 1 em Mi Menor, Op. 39
Em 1892, um crítico finlandês assim definiu a música de Sibelius: “nós reconhecemos essas [colorações sonoras] como nossas, mesmo que nunca as tenhamos ouvido como tais”.2 À época, efervescia na Finlândia um movimento nacionalista, que buscava nas tradições orais referências para a criação de símbolos da identidade nacional. Politicamente, o movimento culminaria na independência do país do domínio russo, em 1917. Jean Sibelius (1865-1957), então na casa dos vinte anos, tornara-se repentinamente o grande compositor da nova música nacional ao estrear, com enorme sucesso, sua primeira obra orquestral: a Sinfonia Kullervo, baseada no Kalevala – epopeia do povo finlandês compilada (e, em certa medida, recriada) por Elias Löhnrot em 1835.
Originário de uma das famílias de matriz sueca que então formavam majoritariamente a elite na Finlândia, contudo, o próprio Sibelius aprendera finlandês como segunda língua, e precisou investigar as tradições orais finlandesas para incorporá-las à sua música. Em 1891, logo após retornar de um período de estudos em Berlim e em Viena, ele viajou à pequena cidade de Porvoo para ouvir os cantos rúnicos – poemas épicos cantados – da griô (mestre de cultura popular) Larin Paraske, sumidade da tradição oral da Finlândia. A experiência influenciou profundamente sua produção subsequente, especialmente Kullervo, os poemas sinfônicos que o seguiram (incluindo o aclamado Finlândia), e sua Primeira Sinfonia, iniciada em 1898 e finalizada no ano seguinte.
Embora não tenha um programa explícito, a narrativa musical da Primeira Sinfonia a conecta à saga do herói da Kalevala e ao tempo mítico de suas aventuras pagãs. O passado é revisitado, contudo, com uma linguagem harmônica moderna e ambígua, e com a coesão da forma sinfônica. Tradição oral e cosmopolitismo urbano mesclam-se e interpolam-se em um jogo contínuo.
A sinfonia começa com um rulo de tímpano em pianíssimo que parece pincelar a paisagem vasta e erma da natureza nórdica, onde ressoa a melodia de uma época distante, tocada por um clarinete solo. Logo os violinos fazem a ponte para o presente, iniciando a forma-sonata e revelando influências do romantismo tardio germânico. Reminiscências desse tempo pré-civilizatório voltam a predominar no segundo movimento, depois transformados pela ótica modernista no agitado terceiro e no dramático quarto movimentos. Compõem ainda o mosaico sonoro influências da tradição russa, que revelam a admiração de Sibelius por Tchaikovsky e outros compositores da nação da qual a Finlândia politicamente procurava se libertar.
A Primeira Sinfonia foi estreada em abril de 1899 pela Filarmônica de Helsinki sob a batuta do compositor. Sibelius revisou a obra logo depois, destruindo a versão original. Nas duas décadas seguintes, ele comporia as outras seis sinfonias que o consagraram como grande compositor finlandês do gênero – mas, novamente, destruiria o que teria vindo a se tornar sua Oitava Sinfonia.
2 HUTTUNEN, Matti. “The National Composer and the Idea of Finnishness: Sibelius and the Formation of Finnish Musical Style.” In GRIMLEY, Daniel M. (ed.). The Cambridge Companion to Sibelius. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 50.
JÚLIA TYGEL
Doutora em musicologia (USP), Pianista, é Assessora Artística da OSESP.